VIIA casa do recoveiro Cancela ficava numa das mais estreitas ruas da aldeia e ao lado de um pequeno quintal, objecto dos cuidados e das diversões do proprietário, que ali gastava algumas horas disponíveis da sua ocupada e laboriosa vida.
Cancela era um verdadeiro judeu errante da aldeia. A maior parte do tempo ia-se-lhe nas estradas; pernoitava hoje numa estalagem; viam-no amanhã já a mais de seis léguas de distância; acotovelava um dia a multidão nas ruas e feiras da cidade, no outro entretinha os curiosos da sua terra, deixando-lhes entrever os tesouros da experiência adquirida à custa de muitos anos e fadigas.
As estradas em Portugal e os novos meios de transporte, que conjuntamente vieram, não destruíram totalmente este tipo dos antigos tempos, anterior a elas. Além da época que parecia dever marcar- -lhes limite à existência passaram, sustentados pela força dos hábitos e justificados pelas irregularidades do serviço das postas; e Deus sabe quando de vez acabarão. Mas Cancela era além disso um recoveiro de uma espécie rara e superior. Em todas as profissões há sempre, no meio do vulgo, que as exerce sem entusiasmo nem consciência dos gozos, superiores aos interesses, que elas podem oferecer, certo grupo de escolhidos, que as idealizam, e enxergam um raio de poesia através das sombras, uma flor entre os espinhos. Cancela era destes; era o poeta da sua profissão. Tinha em si o que quer que era de um touriste, e assim aproveitava todos os ensejos que se lhe oferecessem de explorar algum ponto do país, ainda por ele desconhecido.
Este instinto levava-o frequentemente a Lisboa. As muitas relações do conselheiro, pai de Madalena, com as famílias da aldeia, e a barateza relativa das recovagens operadas por este meio primitivo, proporcionavam-lhe algumas ocasiões disso, as quais o Cancela de boamente aproveitava.