XIV Eu não sei se esta história terá leitor tão mal-aventurado, que não possua recordações e saudades associadas à noite de Natal, aquela festiva e abençoada noite, em que as ruas e os lugares públicos se despovoam, e nos lares domésticos parece crepitar e cintilar o fogo mais acalentador do que nunca. Se algum deserdado da fortuna há aí que não saiba o que é a festa das consoadas em família, esse que não leia este capítulo, que nele não encontrará prazer. Se alguns as gozaram já noutros tempos, porém hoje erram a essas horas pelas ruas solitárias, olhando com inveja para cada raio de luz que rompe das frestas de tantas janelas discretamente fechadas, ouvindo comovidos o ruído das alegrias que vão no seio das famílias, e pela fantasia criando em cada morada um mundo íntimo de afectos e de venturas como o de que a sorte os privou, que esses me perdoem as amargas saudades, que porventura lhes avive assim.
É certo que não há noite mais alegre; alegre desta alegria que vai direita ao coração, sem perturbar os sentidos com fumos de embriaguez; alegre deste alegria cândida a que o homem é sujeito do berço à velhice, a qual respeitam os estos das paixões, na idade delas, e o gelo do egoísmo, no declinar da vida.
Bem escura, bem ventosa, bem fria e húmida surjas tu sempre, noite de vinte e quatro de Dezembro, que melhor então se avaliará pelo contraste a luz, o calor, o aconchego dos lares, e mais íntimos se estreitarão os círculos da família em roda da ceia patriarcal.
E vós todos, a quem uma moda tola não constrangeu ainda a abandonar os hábitos que de pequenos contraístes, e festejais ainda o Natal de Cristo segundo o estilo velho, continuai a manter genuínos esses costumes nacionais, que não resultará daí desdouro para o vosso nome ou brasão.