Mas já essas esperanças estavam perdidas quando Tom Sawyer se adiantou, com nove bilhetes amarelos, nove bilhetes vermelhos e dez azuis, para pedir uma Bíblia. Foi como um trovão num dia de céu límpido. Nem nos dez anos mais próximos Walters podia esperar semelhante pedido vindo dali. Era inegável. Estavam à vista os bilhetes suficientes e eram autênticos. Tom foi, pois, chamado para junto do juiz e das outras visitas e a notícia foi dada pelas entidades competentes. Era a mais completa surpresa da última década; a sensação causada foi tão profunda, que elevou o novo herói ao nível do juiz e toda a escola passou a ter duas maravilhas para admirar, em lugar de uma.
Os rapazes estavam roídos de inveja, mas os mais indignados eram os que se apercebiam, demasiado tarde, que tinham contribuído para aquele triunfo, entregando bilhetes a Tom a troco dos bens que ele adquirira à custa do direito de criação. Estes desprezavam-se a si próprios por terem sido vítimas dum vil engano. O prémio foi entregue a Tom com toda a efusão que o director pôde conseguir naquelas circunstâncias, mas a que faltou espontaneidade, porque o pobre homem sentia que havia ali um mistério que talvez fosse melhor não esclarecer. Parecia-lhe simplesmente absurdo que aquele rapaz tivesse na memória dois mil versículos da Bíblia - ele que sem dúvida não seria capaz de decorar uma dúzia.
Amy Lawrence estava orgulhosa e contente e fazia o possível por mostrá-lo, mas ele não olhava para ela. Em vista disto, ela admirou-se, começou a sentir-se perturbada e em seguida assaltou-a uma suspeita; observou e um olhar furtivo disse-lhe muito. Então sentiu o coração despedaçar-se, teve ciúmes, zangou-se, chorou e odiou toda a gente. Tom era o mais detestado, pensava ela.
Apresentaram Tom ao juiz. O rapaz não pôde falar, faltava-lhe o ar, sentia o coração bater apressadamente, em parte por se dirigir a uma pessoa tão superior e também porque essa pessoa era da família «dela». Se estivessem às escuras ter-se-ia ajoelhado para o adorar. O juiz pôs a mão na cabeça de Tom, chamou-lhe «um belo rapazinho» e quis saber o seu nome. O rapaz gaguejou, atrapalhou-se, e por fim respondeu:
-Tom.
- Não, não pode ser Tom. É...
-Tomás.
- Ah! Agora sim. Também me parecia que devia ser isso, mas com certeza é mais alguma coisa. Ora diz lá.