A Morgadinha dos Canaviais - Cap. 19: XIX Pág. 307 / 508

Olhou outra vez, e viu nos ares a pedra que feriu Madalena.

Então o Zé P’reira não esperou mais nada, tomou uma resolução, fez um sinal ao rapaz, e... Pom - fez a baqueta deste, com toda a força sobre a retesada superfície do bombo.

Taplão, taplão, rataplão, rataplão... - responderam as baquetas, movidas pelas amestradas mãos do Zé P’reira.

Muitas cabeças de amotinados voltaram-se na direcção do som.

O Zé P’reira prosseguiu; adquiria cada vez mais velocidade o jogo das baquetas; começava a ganhá-lo a vapor do entusiasmo.

Principiou a acudir o povo para junto do artista.

Este tomara-se já do raptus, do frenesi musical. Já não eram só as mãos, eram os cotovelos, eram os joelhos, era a cabeça que rufavam.

De olhos fechados, dentes ferrados nos lábios, ventas ofegantes, contraídos quase tetanicamente os músculos do pescoço, a vergá-lo para trás, Zé P’reira parecia endemoninhado. Não via, não ouvia, não sentia, não tinha consciência de si, nem dos seus actos; todo ele era fogo, delírio, convulsão, febre, loucura. Parecia que poderosas correntes eléctricas se transmitiam do tambor ao cérebro, e do cérebro ao tambor, desafiando aqueles movimentos coreicos, aqueles grunhidos surdos, aquelas visagens extravagantes, aquelas contracções gerais, que o torciam, desconjuntavam e desfiguravam.

Vencera-o completamente a febre; sangue, nervos, músculos, cérebro, tudo era domínio seu; congestionado, alucinado, louco, rufou, rufou, rufou com desespero, rufou até as baquetas se não avistarem, de rápidas que se moviam; rufou até o ouvido quase não perceber a descontinuidade dos sons; rufou finalmente até cair por terra exausto, no colapso que sucede às convulsões do espasmo. Se tinha de ser aquele o declinar de uma glória, todos os astros lhe invejariam tão esplêndido crepúsculo.





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