XIII - Vida portuense Manuel Quintino habitava em uma rua próxima do extremo ocidental da cidade, afastada assim do maior bulício dela – bulício que, desde as três horas da tarde até às seis da manhã, era para o guarda-livros insuportável.
Os gostos de Manuel Quintino tinham de facto variações diurnas tão regulares como as de um instrumento meteorológico.
Nas horas de vida comercial impacientava-o o sossego do bairro em que vivia; ao romper do sol por detrás dos outeiros, que ele avistava ao longe das janelas do seu quarto, tomava-o a febre do trabalho; o cantar matutino das aves por entre os arbustos do quintal, a não ser aos domingos e dias santos, não o tentava a ficar a ouvi-las; parecia que mais belezas de harmonia achava nos gritos dos vendilhões que enchem as ruas da cidade baixa. Pelo contrário, ao declinar da tarde, entrava-lhe no coração a nostalgia doméstica; começava a odiar o escritório, a Rua dos Ingleses, o burburinho das praças, e a suspirar, como o expatriado, pela alegria do regresso; extasiava-se em ver de casa descer o astro do dia, e sumir-se no oceano; espectáculo magnífico, ao qual da varanda da sala de jantar assistia com o prazer do espectador que de um camarote de frente presenceia fascinado a vista final de glória de um drama sacro.
O arranjo interior da pequena casa de Manuel Quintino exprimia certo bem-estar, certo conforto, que principiava a querer transpor os limites que o separavam do luxo.
Permitiam-no os ordenados que Manuel Quintino, como primeiro-guarda-livros, recebia das mãos de Mr. Richard, mãos nunca tão apertadas que não deixassem sair algumas mealhas mais do que o ajustado.
Preciso é porém confessar que o espírito económico e a inteligente administração de Cecília concorriam em grande parte para este resultado.