- Em paga da boa vontade com que trabalhas vou dar-te uma alegre nova.
- A mim? Diga.
- Trago-te visitas de alguém, que em poucos dias te dará, em vez de visitas, um abraço.
- De quem? Ah!... Ângelo escreveu-lhe?
- Como adivinhaste depressa!
- Pois de quem mais havia de ser? Mas diz que... em poucos dias... Então?...
- Tê-lo-emos cá pelo Natal.
- Fala verdade?
- Assim mo diz nesta carta. Queres ler?
- Para quê? - respondeu a rapariga, fitando porém o papel com os olhos cheios de curiosidade.
- Ora lê, lê... Até para ver se ainda te recordas das lições que eu te dei.
- Ai, lá isso.... Mas, o caldo do meu padrinho...
- Deixa que o lume é que o há-de aquecer e não a tua presença.
Ermelinda aproximou-se; tomando a carta das mãos de Augusto, começou a lê-la com intensa curiosidade.
Zé P’reira prosseguiu no seu monólogo:
- A religião, senhores - dissertava ele - não manda tal... Isso é que não manda... A religião é a palavra de Deus... e Deus disse... sim... Deus disse... Deus disse muita coisa... Disse que por este deixarás pai e mãe. Ora a Santa Madre Igreja é mãe, é, sim, senhores; que tem lá isso? mas não é mais mãe do que a outra mãe... e então... senhores, uma mulher não deve deixar por ela o seu marido; porque o marido, senhores, é o tudo de uma casa, e o ganha-pão da família. Ora, senhores, que é forte desgraça... O monólogo do desconsolado cônjuge e a leitura de Ermelinda foram interrompidos por uma voz potente, que cantava na rua: O dinheiro paga tudo, Não se fica a dever nada; Toma, toma o limão verde, Ó da fresca limonada.
E logo em seguida estalaram as tábuas do soalho no corredor sob uns passos pesados e ruidosos, e no limiar da porta da cozinha desenhou-se a figura agigantada e hercúlea do recoveiro Cancela, pai de Ermelinda.