Cancela, ou o João Herodes, que assim também lhe chamavam por ter criado, nos autos em que era actor aplaudido e popular, o tipo do sanguinário e infanticida rei da Judeia, fora pela Natureza dotado de uma estatura e robustez dignas de Adamastor.
Encontrava-se nele uma dessas felicíssimas realizações dos temperamentos sanguíneos que, sem ameaçarem de insultos apoplécticos, dão riqueza ao sangue, vigor aos músculos e à fisionomia o aberto e colorido da saúde e os reflexos da satisfação interior.
A barba negra e espessa cercava-lhe as faces coradas, e o natural fulgor dos olhos parecia aumentado sob o duplo arco de bastas sobrancelhas, que, quando contraídas, os rodeavam de sombras ameaçadoras, donde fuzilavam relâmpagos. Era formidável então! O riso pairava-lhe, porém, nos lábios, quando na presença de amigos, descobrindo-lhe duas fileiras de alvíssimos e bem dispostos dentes, desses que os excessos e absurdos culinários ainda não deterioraram.
Parando à porta da cozinha, o Herodes (às vezes lhe chamaremos assim, cedendo ao geral costume na aldeia) procurou com a vista alguém, que mais que tudo trazia na memória - a filha.
Esta, pela sua parte, mal o reconheceu, correu a lançar-se-lhe nos braços.
O pai pegou nela, como se fosse uma pena, levantou-a à altura dos lábios e pousou-lhe nas faces dois sôfregos e ruidosos beijos, ainda palpitantes de todo aquele intenso amor paternal.
- Ah! - exclamou, pousando-a no chão e respirando como quem acaba de satisfazer uma intensa necessidade do coração. - Isto consola que nem o copo de água que a gente, em dias de calma, pede à borda da estrada, quando se leva a boca seca e queimada da poeira! Mais do que isso me sabem estes dois beijos que te dou, pequena. Que querem?... Ó Sr.