A Morgadinha dos Canaviais - Cap. 3: III Pág. 40 / 508

Abre a gente um livro e põe-se a traduzir e vai dizendo: «As armas, o homem, e eu, canto de Tróia, e primeiro, das praias». Quem percebe isto? Ora agora peguem nestas palavras e em outras, que eles punham às vezes em casa do diabo, e façam uma coisa que se entenda! É quase uma adivinha. Ora adeus! E depois - continuou ele, entusiasmado com o riso de Henrique, supondo-o de aprovação - e depois as diferentes maneiras de chamar a um objecto? Isso também tem graça. Nós cá dizemos por exemplo: «reino e reinos», e está acabado; lá não, senhor; diz-se regnum e regna e regni e regno e regnis e até regnorum. Ora venham-me cá elogiar a tal língua.

Henrique estava achando delicioso o ódio entranhado de mestre Bento Pertunhas à latinidade, que ensinava com a proficiência que o leitor pode imaginar, depois do que lhe ouviu.

- Ai, meu caro senhor - continuou o atribulado magíster - eu, se me vejo um dia livre deste amaldiçoado latim, faço uma fogueira, na qual me hei-de regalar de ver arder o Tito Lívio e os Virgílios todos três.

É de advertir que mestre Bento falava sempre no plural, ao referir-se a Virgílio.

Quer-me parecer que para este intérprete da literatura latina tinham de facto existido três Virgílios, provavelmente irmãos, e cada um autor de cada um dos três volumes da edição que lhe servia de texto. Dizia Virgílio 1.º, 2.º e 3.º, como quem se refere aos monarcas homónimos, que sucederam num mesmo reino.

- Não me salvo se morro mestre de latim - prosseguiu ele. - Afunda-me no Inferno o trambolho da sintaxe.

Ia a continuar, quando toda a gente que Henrique viu fora da porta principiou, em desordenada azáfama, a entrar para a loja, que em breve não comportava mais ninguém.

- Aí vem o homem, Sr. Pertunhas; aí vem.





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