Apesar de pronunciada em tom baixo e quase a medo, bastou esta palavra para o despertar.
Abriu imediatamente os olhos, fitou-os no criado e, estendendo os braços naquele quase involuntário movimento com que todas as manhãs despedaçamos as últimas cadeias com que nos algema o sono, deixou-lhos cair em volta do pescoço, como para apoiar-se, dizendo ainda com voz mal distinta:
– Bons dias, André. Que horas são?
– Meio-dia.
Foi a resposta que obteve, acompanhada de significativo sorriso.
– Save us! – exclamou Carlos, imitando a despenseira inglesa, de quem era esta a frase habitual, e ao mesmo tempo voltou os olhos para o relógio fronteiro, o qual, como em resposta a esta mímica interrogatória, bateu doze lentas e sonoras pancadas.
– Pois não me parecia – continuou Carlos, ao acabar de contá-las. – Ia até estranhar-te a madrugada, sabes tu? E… e… o pai?
– Saiu já.
– E… e que disse?
André encolheu os ombros, respondendo:
– Nada.
Era a maneira de exprimir que alguma coisa dissera.
Carlos compreendeu isto mesmo, mas não perguntou mais nada.
– Toca a pôr a pé, que são horas! – dizia André, ocupando-se a levantar alguns objectos que via pelo chão.
– Desumano, cruel, que me recordas? – respondeu-lhe Carlos em tom de recitação trágica.
– Vamos, vamos, preguiçoso.
Carlos abriu ainda outra vez a boca, em gesto quase sentimental de despedida ao sono que se afastava; afagou com a mão o colossal terra-nova, que veio pousar-lhe a cabeça nos joelhos, e abriu ao acaso o livro que encontrou à mão, um romance de Dickens, do qual leu algumas linhas distraído.
– Então? – insistiu André, vendo-o pouco disposto a levantar-se. – Fica aí?
– Vai-me buscar o almoço, homem. Traz-me só café. Parece-me que ainda agora terminei aquele turbulento jantar de ontem.