A Morgadinha dos Canaviais - Cap. 1: I Pág. 5 / 508

De certo tempo em diante começou, porém, a incomodá-lo uma espécie de vácuo interior, um mal-estar, doença infalível nos celibatários sem família, quando chegam à idade a que chegou Henrique, e passam a vida como ele.

Tudo lhe causava fastio. Bocejava em S. Carlos, bocejava nas Câmaras, bocejava no Grémio, bocejava no Suíço, no Chiado e nos círculos dos seus amigos, os quais principiaram também a achá-lo insuportável de insipidez; porque poucas coisas há que mais perturbem o espírito do que o espectáculo de um homem que boceja ou dorme, onde e quando os outros forcejam por divertir-se.

O demónio da hipocondria, esse demónio negro e lúgubre, implacável verdugo dos ociosos e egoístas, o qual havia muito o espiava, apoderou-se dele em corpo e alma.

Aí temos, desde esse instante, Henrique muito preocupado com a sua pessoa, imaginando-se vítima de mil e uma moléstias, as mais disparatadas e incompatíveis, suspeitando-se conjuntamente predestinado para a apoplexia e para a tísica, para o cancro e para a alienação, para a cegueira e para os aneurismas, tremendo à leitura do obituário da semana, folheando livros de medicina, construindo teorias fisiológicas, consultando todos os médicos da capital, experimentando todo o arsenal farmacêutico e todos os anúncios, em parangona, da quarta página dos periódicos, e elevando as crenças do seu espírito amedrontado até às misteriosas e nevoentas alturas do credo homeopático! Ao mesmo tempo manifestou-se nele uma progressiva degeneração de gosto: não podia ler uma página dos livros que lhe eram predilectos; desfazia-se com desgosto de quadros, móveis, estátuas, objectos curiosos que coleccionara com paixão; detestava a música, o teatro, numa palavra, tornara-se em um dos maiores flagelos que podem pesar sobre a humanidade e que muito em especial causam o suplício dos médicos que os aturam.





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