A Morgadinha dos Canaviais - Cap. 2: II Pág. 27 / 508

Pois isto de estar triste sem ter de quê... Sim... Porque, não te morrendo ninguém, nem te doendo nada... Ó poetas devaneadores, ó almas melancólicas, que percebeis, no sussurrar das brisas, no ciciar das folhas, no murmurar dos arroios, queixas ocultas de dríades e de náiades, sentidas vibrações das harpas de fadas aéreas que vivem em palácios de nuvens; ó corações inoculados de poesia, que vos confrangeis e gotejais lágrimas sinceras ao desmaiar do dia, ao desfolhar das árvores no Outono; poetas que escutais, com Vítor Hugo, as vozes interiores, os cantos do crepúsculo, e com ele adivinhais os mistérios dos raios e das sombras, perdoai a involuntária blasfémia da tia Doroteia, que não contém o menor fermento de malícia; perdoai-lhe a dura expressão de que ela se serviu para caracterizar os vossos arroubamentos, as vossas tristezas vagas, os vossos devaneios, e crede que, apesar da frase, teríeis nela uma alma mais afinada para simpatizar convosco de que tantas que por aí fazem gala de vos compreender melhor.

Henrique não podia, porém, digerir a expressão de que se servira a tia, para diagnosticar o seu mal.

- Mania! - repetia ele - Essa agora! Sempre é forte de mais. Mania, não, tia Doroteia, lá isso não. Mania!

- Eu lhe digo - acudiu a criada. - Não vá sem resposta; que está quase como o cunhado da Rosa do Bacelo. A senhora não se lembra? Andou aquela alminha por aí sempre muito triste, sempre a falar só, até que afinal lá foi parar...

- Aonde? - perguntou Henrique, erguendo os olhos interrogadoramente para a criada.

- Lá foi parar a Rilhafoles - concluiu esta, espevitando a vela o mais naturalmente deste mundo.

Henrique de Souselas pulou com a sinceridade.

Nem acabou de sorver a última colher de caldo de arroz, que lhe estava sabendo como nunca manjar lhe soubera.





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