O que eu vejo é que, junto de Deus e da Virgem, se pintam anjos, como a minha pequena, e não figuras... respeitáveis, como a da comadre; ora então! A beata, apesar de trazer sempre na memória o
Vanitas vanitatum do Ecclesiastes, não foi inteiramente insensível ao remoque do compadre. Azedou-se-lhe o humor, e, voltando-se para Ermelinda, disse-lhe como para descarregar sobre ela a má vontade com que estava ao pai:
- Sai-te p’ra lá. O senhor meu homem tinha muita pressa de jantar! Deixar assim uma criança fazer uma fogueira destas! Nem para assar um boi! É preciso não ter consciência.
E tirou do lume um pequeno cavaco, para justificar o dito.
Zé P’reira monologava ainda. Augusto continuava examinando o livro recebido.
Ermelinda afastou-se do lar com timidez. No ânimo daquela criança, que era de uma organização nervosa, excepcional na aldeia, exercia a beata uma espécie de fascinação, um misto de respeito e de terror, capaz de dissipar todos os risos dos seus lábios infantis.
Era outra na presença da madrinha: fitava-lhe nas faces descarnadas e macilentas os belos olhos negros; seguia-lhe, quase assustada, o movimento dos lábios austeramente contraídos; tremia ao escutar- -lhe a voz aguda e penetrante, falando nas penas do Inferno; chorava à menor repreensão que dela recebia, e contudo amava-a, amava-a, porque Ermelinda, na sua candura de criança, supunha a madrinha uma santa; avultavam-lhe, como virtudes beatificantes, os defeitos da devota velha; a inocente julgava-se uma grande pecadora quando, depois de ter na mente aquele perfeito tipo, voltava a olhar para si, para o fundo da sua consciência: e que negros e hediondos pecados lá encontrava! Uma pequena mentira que dissera; um domingo em que faltou à missa; um juramento que, sem o sentir, lhe saíra da boca; um jejum que não guardara e outros crimes da mesma força.