A Morgadinha dos Canaviais - Cap. 1: I Pág. 2 / 508

orelhas do macho, a indiferença, a taciturnidade ou o manifesto mau humor, que nem as belezas e acidentes da paisagem natural conseguiam já desvanecer, o obstinado silêncio que apenas de quando em quando interrompia com uma frase curta mas enérgica, com uma pergunta impaciente sobre o termo da jornada, contrastavam com a viveza de gestos e desempenado jogo de membros do pedestre, com a sua torrencial verbosidade, a que não opunha diques, e com as joviais cantigas e minuciosas informações a respeito de tudo, por meio das quais se encarregava de entreter e, ao mesmo tempo, instruir o seu sorumbático companheiro.

Explica-se bem esta diferença, dizendo que o cavaleiro era um elegante rapaz de Lisboa, que fazia então a sua primeira jornada, e o outro um almocreve de profissão.

O leitor provavelmente há-de ter jornadeado alguma vez; sabe, portanto, que o grato e quase voluptuoso alvoroço, com que se concebe e planiza qualquer projecto de viagem, assim como a suave recordação que dela guardamos depois, são coisas de incomparavelmente muito maiores delícias do que as impressões experimentadas no próprio momento de nos vermos errantes em plena estrada ou pernoitando nas estalagens, e mormente nas clássicas estalagens das nossas províncias. As pequenas impertinências, em que se não pensa antes, que se esquecem depois, ou que a saudade consegue até doirar e poetizar a seu modo; esses microscópicos martírios, que de longe não avultam, actuam-nos, na ocasião, a ponto de nos inabilitar para o gozo do que é realmente belo. A dureza do colchão em que se dorme, do albardão ou selim sobre que se monta, o tempero ou destempero do heteróclito cozinhado com que se enche o estômago, a lama que nos encrusta até os cabelos, o pó que se nos insinua





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