A Morgadinha dos Canaviais - Cap. 1: I Pág. 3 / 508

até os pulmões, o frio que nos inteiriça os membros, o sol que nos congestiona o cérebro, tudo então nos desafina o espírito, que trazíamos na tensão necessária para vibrar perante as maravilhas da natureza ou da arte.

Só pelo preço de muitas jornadas se compra o hábito de ficar impassível no meio dos episódios destas pequenas odisseias, que atormentam e exaurem o ânimo dos Ulisses novatos; mas ai! quando se adquire esse hábito, também nos achamos já com a sensibilidade mais embotada para as comoções do belo.

Examina-se com mais minuciosidade, mas com menos entusiasmo; analisa-se mais e melhor; porém a própria análise é a prova de que se sente menos. Onde domina o sentimento e a imaginação, mal têm cabida a paciência e fleuma, necessárias aos processos analíticos. O homem positivo e frio recolhe de qualquer excursão à pátria com a carteira cheia de apontamentos; o entusiasta e poeta nem uma data regista. Viu menos, sentiu mais.

Mas Henrique de Souselas - que era este o nome do cavaleiro - fora educado e passado da infância à plena juventude, em Lisboa, levantando-se por avançada manhã, frequentando o teatro, o Grémio, as Câmaras, parolando no Chiado ou no Rossio, e indo alguns dias do ano a Sintra, ou a qualquer praia de banhos, desenfadar- se da monotonia da capital.

Desde que fazia perfeito e consciente uso da razão, fora esta jornada, em que o encontrámos, a primeira levada a efeito, e logo sob tão maus auspícios, que era para sufocar-lhe à nascença os instintos de touriste, se porventura quisessem despertar nele.

Havia dois dias que cavalgava aquele rocinante, único veículo acomodado aos caminhos por que passara. E então que dois dias! Daqueles, durante os quais o céu, uniformemente pálido, parece desfazer-se





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