- É uma fénix - insistiu Henrique, ironicamente. - Vejo que não é susceptível de discussão; impõe-se à gente como um axioma.
Eu tenho hábitos de livre-pensador, mas... forçar-me-ei a incluir no meu credo esse dogma.
- Perdão - replicou Ângelo. - Um axioma não se demonstra, e a boa alma de Augusto está todos os dias a demonstrar-se por acções generosas.
- Por favor! Dêem como não ditas as minhas palavras! Arrependo- me da minha irreverência, e, se ele aqui estivesse, principiaria a penitenciar-me na sua presença.
- E é certo que nos falta aqui Augusto. Como te não lembraste dele, Ângelo?
- Não viria. Nesta noite não deixaria o Tio Vicente.
- Ah, sim. Esquecia-me daquele pobre Vicente.
- É do ervanário que falam? - perguntou Henrique.
- Justamente.
- Outra fénix; e quer-me parecer que também pertence ao número dos invioláveis; não é verdade, prima?
- Pertence ao número dos infelizes, primo, o que é justo considerar- se uma espécie de inviolabilidade.
A resposta colocou Henrique em mau terreno, e por isso apressou- se a desviar-se do ponto principal da questão, dizendo:
- Infeliz? Porque lhe chama infeliz? Os visionários como ele têm em si os elementos da própria felicidade, e ninguém possui poder de perturbar-lha. Além de que o ervanário goza aqui na terra de uma certa soberania, que deve lisonjeá-lo.
- E olha que nem em Lisboa há talvez quem saiba tanto como ele em coisas de doenças e de remédios, menino - disse D. Doroteia, que era uma das fervorosas apologistas da ciência do ervanário.
- É na verdade um homem singular! - disse o conselheiro. - Dantes, na noite de Natal, e em todas as solenidades de família, tínhamo-lo também por comensal, que ainda é parente arredado da casa.