tia Doroteia com o seu vestido roxo, o seu lenço castamente cruzado no peito, a sua touca de folhos alvíssimos e de fitas escuras, o molho de chaves à cinta, o livro de orações na algibeira e os óculos a marcarem no livro a reza habitual.
Maria de Jesus de igual maneira. Era apenas uma edição popular da mesma alma. Sucedera demais com elas o que é sempre de esperar de uma longa e íntima convivência: haviam reciprocamente adoptado maneiras e modos de pensar e de ver e de dizer as coisas uma da outra, a ponto de qualquer delas ser como que uma premissa donde, a modo de conclusão, se deduzia a outra facilmente.
Tudo isto percebeu logo Henrique de Souselas ao primeiro exame que fez das duas santas mulheres.
Entremos agora com ele para dentro da sala.
Quem, vinte anos antes, tivesse visitado a casa de Alvapenha e aí voltasse de novo com Henrique, julgaria, à vista da uniforme disposição de coisas mantida ali dentro em tão distantes épocas, que todo esse tempo não fora mais do que um sonho de momentos.
Encontraria os mesmos móveis, na mesma colocação; as mesmas cobertas nos leitos apenas mais desbotadas; as mesmas ou iguais cortinas nas janelas; o mesmo cheiro de feno e alfazema na atmosfera dos quartos, os mesmos quadros na parede, as mesmas jarras nas cómodas.
A memória de Henrique, aquela inconstante e leviana memória de rapaz estouvado, sentia-se acordar à vista daquilo tudo.
A sala tinha uma fisionomia característica.
Suponha-se uma não muito ampla quadra de pouca altura, toda pintada a oca, e alumiada por duas mal rasgadas janelas de peitoril, com seus competentes assentos de pedra, um defronte do outro, e com meias cortinas de cambraia sempre corridas - pleonasmo de discrição que se não justificava, visto que as janelas, abrindo para a quinta, não tinham vizinhança de cujos olhares precisassem de recatar-se.