De feito, quando ali eram mais ruidosas as conversas e mais espontâneos os risos, dois homens apenas, sentados um defronte do outro, a uma pequena mesa circular, solenizavam naquela modesta sala o santo aniversário. Um era o proprietário da casa, o outro Augusto, um dos poucos que se atrevia a frequentar àquelas horas mortas a habitação do velho.
Além da mesa, sobre a qual estava uma ceia composta de queijo, maçãs, nozes, castanhas, duas sopeiras com escabeche, especialidade na confecção da qual o ervanário era eminente, e uma garrafa de vinho do Porto, de prometedora cor de topázio, consistia o resto da mobília numa estante de pinho, vergada sob o peso de in-fólios de grossas encadernações e folhas vermelhas nos aparos, em algumas cadeiras e bancos também ocupados com livros e com vários utensílios empregados nas explorações científicas do velho, tais como caixas de lata, frascos, martelos, foicinhas, limas, os quais ainda sobravam, para alastrarem o chão.
Todo o recinto era apenas alumiado por um candeeiro de azeite, e a escassa luz, que dos três lumes que, em atenção à solenidade da noite, o velho acendera, ia reflectir-se no vulto alvacento de um Cristo de marfim, pendente de um crucifixo negro, que sobressaía naquelas paredes nuas e caiadas.
Havia bastante tempo que aqueles dois homens, sentados defronte um do outro, guardavam silêncio, um desses silêncios, durante os quais os espíritos, como se impacientes com as longuras da palavra, tendo-se desembaraçado dela, voam a par, para adiantarem caminho e voltarem mais longe a associarem-se à sua mais lenta companheira.
Augusto, com os olhos fixos na luz que iluminava a cena, parecia alheio a quanto o rodeava.
O ervanário, sem desviar os olhos dele, com o braço estendido para o cálice que tinha defronte de si, e a cabeça inclinada, parecia espiar, um por um, todos os gestos de Augusto, e estudar neles os pensamentos que o preocupavam.