- Qual casca?
- A casca onde escrevera que tínhamos fugido para sermos piratas.
Agora até tenho pena de que a tia não acordasse quando a beijei. Palavra que tenho.
As rugas da cara da tia desfizeram-se e, por momentos, os seus olhos brilharam de ternura.
- Tu beijaste-me, Tom?
- Beijei, sim, tia.
- Tens a certeza disso, Tom?
- Tenho, sim, tia, a certeza absoluta.
- Porque me beijaste, Tom?
- Porque gosto muito de si e quando a ouvi lamentar-se tive uma grande pena.
O pequeno parecia dizer a verdade e a tia Polly em vão quis dominar a tremura da voz quando disse:
- Dá cá outro beijo agora, Tom, e vai já para a escola sem me ralares mais.
Mal o rapaz saiu, a senhora correu a um armário e tirou de lá a ruína do casaco com o qual Tom tinha sido pirata. Parou, com ele na mão, e disse consigo própria:
- Não. Não me atrevo. Coitado! Calculo que me mentiu, mas foi uma mentira piedosa e que me deu tamanha consolação!... Deus lhe perdoe! Sei que Deus lhe perdoa, porque foi o seu bom coração que o fez mentir. No entanto, não quero ter a certeza que me mentiu. Não quero ver.
Tornou a arrumar o casaco e ficou a meditar um momento. Por duas vezes levantou a mão para lhe pegar e duas vezes se conteve. Aventurou -se ainda uma vez, mas procurou confortar-se com esta ideia:
- Foi uma mentira piedosa. Foi uma mentira piedosa, por isso não quero apoquentar-me a pensar nela.
No entanto, procurou nos bolsos do casaco e, momentos depois, acabando de ler, por entre lágrimas, o que Tom escrevera no bocado da casca, murmurou:
- Ainda que tivesse cometido um milhão de pecados, era capaz de lhos perdoar depois disto!