A Morgadinha dos Canaviais - Cap. 18: XVIII Pág. 285 / 508


No olhar do divino infante
Raiou suave fulgor,
Foi a aurora radiante
Que anuncia um redentor.

Não se descreve a impressão causada por estes versos, que assim transformavam a Fama do auto no anjo-da-guarda da infância. Muitas causas concorriam para produzir este efeito: a figura, a voz e o gesto de Ermelinda, que lhe davam uma aparência verdadeiramente angelical, e depois aquelas palavras inesperadas, aquela exposição desconhecida e em versos a que a melancolia da toada, em que eram recitados, parecia aumentar a cadência métrica. Enquanto debaixo da impressão daquela voz sonora e infantil, ninguém procurava explicar o mistério. Milagre lhes parecia e quase como milagre o aceitavam, e, de ouvidos atentos, colos estendidos e bocas semiabertas, parecia recolherem, uma a uma, aquelas palavras, como se de um verdadeiro emissário celeste as escutassem. O tablado enchera-se pouco a pouco de gente, e ninguém dera por isso. Os actores que estavam atrás da cortina tinham sido feridos pelos primeiros versos, diferentes dos que eles esperavam; isto obrigou-os a espreitar. Depois, como arrastados pela magia daquela voz e daquele gesto, vieram adiantando-se, adiantando-se, e cedo formavam círculo à volta de Ermelinda. O primeiro da frente era o Herodes. O espanto, os afectos, o orgulho de pai, a exaltação de artista combinavam-se para dar-lhe ao rosto uma expressão quase de êxtase. Olhava para a filha como se a visse animada de inspiração divina.

Pertunhas, o ensaiador do auto, que franzira o sobrolho, prevendo trapalhada aos primeiros versos recitados por Ermelinda, agora, de boca aberta, era de todos o mais espantado. No Mosteiro só Ângelo sorria, ele só interpretava o milagre. Todos os mais escutavam silenciosamente aquela voz de criança, que, em campo descoberto e no meio de tantos espectadores, soava distinta e vibrante como se efectivamente tivesse alguma coisa de sobre-humana.





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