A Morgadinha dos Canaviais - Cap. 13: XIII Pág. 194 / 508

Ângelo segurou-lhe a mão.

- Que estavas a ler, Linda?

- Não é nada...

- Deixa ver.

- Não deixo.

- Porque não deixas?

- Para não ser curioso. Que modos são esses de andar a escutar a gente?

- Pois sim, sim; mas deixa-me ver os versos.

- Não são versos. Quem lhe disse que eram versos?

- Pois não ouvi? Que era isso de tirano e de Egipto, que dizias?

- Que há-de ser? - disse afinal Ermelinda, dando-lhe o papel.

- São os versos do auto dos Reis. Sabe agora?

- Do auto dos Reis? Ai, sim; está a chegar o dia! Mas que tens tu com o auto dos Reis?

- É que este ano meu pai quer que eu seja a Fama.

- Viva! E que bonita Fama que vais ser! E já sabes os versos?

- Estava a decorá-los.

- Tenho mil línguas, mil bocas... - dizia Ângelo, lendo no princípio. - O que é pena é pôr uma chochice destas na boca de uma Fama como tu.

- Que está a dizer? Então os versos não são bonitos?

- Oh! Pois não são! - exclamou Ângelo, gracejando. - São uma perfeição! E, tendo-os corrido com a vista, principiou a lê-los com acentuação e ênfase comicamente exageradas.

- Ora ouve lá:


Sabei que aquele Herodes,
Lobo cruel carniceiro,
Tremendo de inveja pura
Lhe venham tirar o reino...

- Então que há que dizer a isto? - E prosseguiu:


Feria raios de fogo
De seus olhos com mudança;
E só pretende fazer
Alvo de sua vingança.

- Isto é claro e sublime!

- Lendo assim, pudera! - disse Ermelinda, rindo.

É preciso que advirta o leitor que estas quadras e o auto, a que nos estamos referindo, não são obra da nossa imaginação. Por aí corre manuscrito o auto, mais ou menos extravagantemente ortografado, segundo o sistema ou o capricho do copista. Em quase todas as aldeias dos arredores do Porto podem ver em cada ano representado este ou outro análogo, com aplauso e glória da arte.





Os capítulos deste livro