Às mãos nos veio uma dessas cópias, à qual, menos na ortografia, escrupulosamente nos cingimos.
Ângelo era talvez em demasia severo na apreciação crítica sobre o merecimento literário da obra, ao chamar-lhe uma chochice. É raro que a musa popular não tenha, apesar da sua rudeza, alguma inspiração. Neste mesmo auto se encontram vestígios dela. Mas não é nossa missão apreciar as opiniões dos actores que pomos em cena; tão-somente as registamos, sem nos responsabilizarmos por nenhuma.
Ângelo redarguiu à reflexão de Ermelinda:
- Pois bem; para que não digas que é da maneira de ler que eles parecem chochos, repara; vou lê-los agora com toda a serenidade. Ora escuta:
Que quantos até dois anos
Em Belém fossem nascidos
E toda a sua comarca,
Matassem a ferro frio.
Sem excepção a pessoa
Que nos distritos se achasse,
Entendendo dessa sorte
Que nós lhe não escapássemos.
- Olhem que sensaboria!
Esta divisão administrativa e judicial, em distritos e comarcas, que o autor fez na Judeia e que tanto parecia revoltar Ângelo, era uma destas liberdades shakespearianas, que se devem perdoar aos génios.
- E não foi assim? - perguntou Ermelinda, que não percebia ainda o motivo dos reparos de Ângelo. - Pois Herodes mandou matar todas as crianças da Judeia; então não mandou?
- Mandou, mandou; mas a Fama é que devia contar isso melhor.
- Melhor?! Então não é bonito este verso?
E Ermelinda, tirando o manuscrito das mãos de Ângelo, leu a seguinte quadra:
Para livrarem seus filhos
Da morte dos inocentes,
Dos braços faziam cruzes
Aquelas mães impacientes.
Os instintos populares da filha do Cancela perceberam a beleza, talvez um pouco rude, do tocante quadro, que estes versos exprimem.