- Bons dias, Manuel - respondeu o ervanário, deixando-se ficar sentado.
- Saía agora daqui um homem, que julgo será rebelde a toda a tua medicina. Padece de mal que se não cura.
- Os vícios são enfermidades mais rebeldes do que os achaques do corpo, são.
- Já que tu não apareces no Mosteiro, como dantes, para solenizar connosco as festas do Natal, vim eu ver-te.
- Obrigado.
- A tua misantropia vai-se azedando, Vicente - continuou o conselheiro, sentando-se à beira do tanque. - Cada vez te estás a sequestrar mais dos homens, cada vez mais os aborreces.
- Eu não aborreço os homens, enganas-te. Não os aborrece quem passa a vida a procurar os meios de aliviar os padecimentos dos seus semelhantes. Estou velho, isso sim; e, como velho, encontro já no mundo pouca gente com quem me entenda. As ideias do meu tempo passaram. Por isso deixo-me ficar em casa a pensar nele.
- És um homem singular; um verdadeiro filósofo. Ora dize-me; e em que cogitas tu, quando assim passas uma manhã inteira, sentado nesse banco, com os joelhos ao sol, os braços cruzados, e os olhos no chão?
- No passado. Pois não to disse já? O domingo reservo-o eu para me recordar. Aí está que há pouco, quando aqui me vim sentar, ao ouvir os repiques na igreja, lembrei-me de que era dia de Natal, e o meu pensamento voltou quarenta anos atrás a um dia igual ao de hoje. Lembras-te dele, Manuel?
- Do dia de Natal de há quarenta anos? Não.
- Lembro-me eu. Faz hoje mesmo quarenta e dois anos que, mais cedo do que estas horas, vieste ter comigo aqui a casa. Tinhas pouco mais ou menos a idade que hoje tem teu filho Ângelo. Meu pai saíra; julgámos nós ambos boa a ocasião de levar a cabo um projecto que havia muito tempo trazíamos na cabeça. Crescia a um canto do muro, além, à beira do poço, uma pequena faia que ali não podia durar muito tempo; meu pai todos os dias a ameaçava com a enxada e a custo a tínhamos defendido.