A Morgadinha dos Canaviais - Cap. 18: XVIII Pág. 274 / 508

mais uma vez poisar nos ombros o manto da realeza judaica; brandir a espada infanticida, carregar aqueles sobrecenhos com que fazia chorar as crianças e estremecer as mães; ia ressuscitar Herodes, o déspota legendário.

Trabalhando e suando, resmoneava os versos do seu papel de tirano e insensivelmente fazia gestos e esgares prometedores de efeitos cénicos futuros.

Os seus colegas eram menos ardentes pela arte. O Herodes olhava- -os com a sobranceria de um Talma, e muitas vezes lamentava sinceramente a ausência de vocações dramáticas que auxiliassem a dele.

E não sorriam os leitores a esta veleidade artística do recoveiro; ali havia fundamentos para ela. O Cancela era o minério de um trágico, deixem-me assim dizer. No meio de uma escória de rusticidade continha abafado mineral de lei.

Tivessem sido outras as contingências da sua vida, vê-lo-iam porventura arrebatar plateias inteiras com as revelações do génio, que, às vezes, num grito, num sorriso, num gesto se manifesta; mas, ainda assim inculto, não mentia nele o verdadeiro entusiasmo, o sentimento da arte que lhe afogueava as faces e os olhos e lhe animava o gesto no calor do desempenho; não mentia aquela embriaguez que lhe causavam os aplausos da multidão. Não há verdadeiro génio artístico, que se não namore do público, embora o saiba caprichoso, inconstante e ingrato. O homem, indiferente aos aplausos das turbas, nunca será poeta nem artista de verdadeira inspiração. O amor vivo da glória adianta a meio caminho os empreendedores desta nova conquista de velocino.

Ermelinda, essa, tremia com a comoção de artista novel, à lembrança do espectáculo, em que pela primeira vez ia entrar.

As senhoras do Mosteiro, ou antes, Madalena e Cristina, tinham querido encarregar-se da toilette da Fama.





Os capítulos deste livro