A Morgadinha dos Canaviais - Cap. 18: XVIII Pág. 277 / 508

Henrique foi quem mais sublimes esforços fez para sofrer com paciência aquelas torturas acústicas. Ele que nem à orquestra de S. Carlos perdoava uma desafinação, obrigado a escutar com um sorriso aquela banda pandemónica!

- Coragem! Coragem! - murmurava-lhe o conselheiro, impassível como perfeito político. - Nas ocasiões é que os homens se conhecem! Coragem!

- É em extremo forte a provação! - respondia-lhe, gemendo, Henrique.

- Firmeza, e que a palidez do susto nos não atraiçoe - continuava aquele.

Isto obrigava Henrique a nova luta; desta vez para manter a seriedade.

Afinal calou-se a banda, sem que se pudesse dizer o que tinha querido tocar. Sucedeu-lhe um intervalo de silêncio. Passou pela assembleia o estremecimento que precede as ocasiões solenes. Os olhares de tantos espectadores fixavam-se na coberta de chita, que já se via ondular. Ouvia-se um surdo rumor, significativo de ansiedade, como se fora a resultante do palpitar de tantos corações.

Apareceu enfim a primeira personagem do auto. Era o Herodes.

A alta e membruda figura do pai de Ermelinda, com os seus ombros largos, as faces injectadas, o olhar faiscante, os cabelos e barbas negros e espessos, o andar grave e pesado, sob o qual gemiam as junturas do tablado, o timbre volumoso de voz e certo arreganho selvático, com que falava e gesticulava, imprimia na multidão um quase pavor, que nem o conhecimento íntimo que tinham do homem conseguia dissipar.

Herodes trazia manto real e turbante muçulmano, borzeguins vermelhos, corpete de veludilho azul, calções golpeados. Pendia-lhe à cinta um alfange e uma pistola; ao peito algumas condecorações.

Aparência geral, a dos profetas nas procissões.

O auto rompe com um monólogo de Herodes.

O tirano da Judeia, sobressaltado e meditabundo, faz considerações substanciosas sobre a condição dos reis em geral e a sua em particular.





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