- Coragem! Coragem! - murmurava-lhe o conselheiro, impassível como perfeito político. - Nas ocasiões é que os homens se conhecem! Coragem!
- É em extremo forte a provação! - respondia-lhe, gemendo, Henrique.
- Firmeza, e que a palidez do susto nos não atraiçoe - continuava aquele.
Isto obrigava Henrique a nova luta; desta vez para manter a seriedade.
Afinal calou-se a banda, sem que se pudesse dizer o que tinha querido tocar. Sucedeu-lhe um intervalo de silêncio. Passou pela assembleia o estremecimento que precede as ocasiões solenes. Os olhares de tantos espectadores fixavam-se na coberta de chita, que já se via ondular. Ouvia-se um surdo rumor, significativo de ansiedade, como se fora a resultante do palpitar de tantos corações.
Apareceu enfim a primeira personagem do auto. Era o Herodes.
A alta e membruda figura do pai de Ermelinda, com os seus ombros largos, as faces injectadas, o olhar faiscante, os cabelos e barbas negros e espessos, o andar grave e pesado, sob o qual gemiam as junturas do tablado, o timbre volumoso de voz e certo arreganho selvático, com que falava e gesticulava, imprimia na multidão um quase pavor, que nem o conhecimento íntimo que tinham do homem conseguia dissipar.
Herodes trazia manto real e turbante muçulmano, borzeguins vermelhos, corpete de veludilho azul, calções golpeados. Pendia-lhe à cinta um alfange e uma pistola; ao peito algumas condecorações.
Aparência geral, a dos profetas nas procissões.
O auto rompe com um monólogo de Herodes.
O tirano da Judeia, sobressaltado e meditabundo, faz considerações substanciosas sobre a condição dos reis em geral e a sua em particular.