Não há vida mais inquieta,
Nem mais cheia de cuidados,
Do que a de um rei que pretende
Conservar os seus estados.
O Cancela dizia isto em tom pausado, com os braços cruzados, medindo o palco a passos largos.
Continuam várias proposições de fisiologia do trono, e, do caso genérico baixando ao particular, da tese à hipótese, principia a falar de si. Cancela, conhecedor dos segredos da arte, começava aqui a dar mais vida à recitação, como para mostrar o maior empenho que tomava a alma neste capítulo da especialidade. Referia-se aos anúncios da vinda do Messias, e inquietava-se; a maré das paixões subia; a voz traduzia-lhe o crescimento. Depois seguia-se um como reflexo de desalento, para com mais violência se exaltarem os afectos. Nos paroxismos da fúria, o Cancela, dando toda a força à sua voz potente, soltava berros, que participavam da natureza dos do tigre:
Começarei desde logo
A publicar leis tiranas,
Que aterrem os meus montes,
Os palácios e as choupanas.
Será tal o meu furor,
Tal a minha indignação,
Que ninguém se atreverá
A conquistar meu brasão.
O interesse do espectáculo aumentava. Os olhos do público principiavam a fixar-se. A excitação de ânimos a que os transportes de Herodes, inquieto pelo seu brasão, levava o público, foi serenada por um chorado coro de anjos que cantavam atrás da cortina:
Não temas, ó rei cruel,
Que te conquiste o dossel.
Herodes pára aterrado, ao escutar estas vozes, apesar de lhe afiançarem a segurança do dossel, pela qual ele parecia receoso.
Vacila, entra-lhe o medo no coração, medo que procura afugentar com bravatas, em que ameaça pôr tudo por terra. O Cancela exprimia tudo isto com abundância de gestos e de movimentos.