Com os braços descaídos, os dedos encruzados, e a cabeça ligeiramente pendida, em expressão de melancolia, e os olhos elevando-se para procurarem os de Madalena e de Cristina nas janelas do Mosteiro, mas que de longe parecia procurarem o céu, Ermelinda adiantava-se vagarosa, serena, tendo no gesto o encanto da inocência, tendo nos passos a hesitação da timidez. Havia tanto de sobrenatural no vulto cândido, franzino e melancolicamente suave daquela criança, que o actor que estava em cena não teve de simular espanto, porque o sentia real e não podia desviar os olhos daquela aparição.
O silêncio era profundo; parecia que em todos estava actuando a força de um encantamento.
Como na antiga tragédia, o facto principal da acção, a carnificina dos inocentes passava-se fora de cena. À Fama competia narrá-lo.
Ermelinda, a meio do palco, parou. Com uma voz argentina e leve tremor de comoção, principiou lentamente e no meio de um religioso silêncio a recitar os versos da narração, os quais, como o leitor já sabe, não eram os do auto, que mestre Pertunhas se estafara a ensaiar.
Os versos que Ermelinda recitou diziam assim:
Desci dos celestes coros,
Por Deus mandada a escutar
Da infância as queixas e os choros,
Para lhos ir confiar.
Desci. Na terra, nos mares,
Tanta miséria encontrei,
Que os meus magoados olhares
Da terra e mar desviei.
Desci. E tantos gemidos,
Tão dolorosos ouvi!
Que, turbados os sentidos,
Quis recuar... mas desci.
Nesta colheita de dores
Pelo mundo todo andei,
No pranto dos pecadores
As minhas vestes molhei.
Vagueando dias e dias,
Chegara a Judeia enfim,
Quando um clamor de agonias
Veio de longe até mim.
O Sol, inflamado
Destas terras orientais,
Tinha no disco afogueado
Não sei que estranhos sinais.