Não podia passar da ideia a Clemente a maneira insólita e quase desabrida com que Jorge por duas vezes recebera as suas consultas relativamente ao assunto do casamento de Berta.
Clemente conhecera sempre em Jorge uma tal placidez de espírito, uma tal impassibilidade em presença dos casos mais estranhos, que não sabia como explicar aquela súbita transformação.
Esta mudança em Jorge e a revelação que ouvira da boca de Berta tão preocupado traziam o pobre rapaz, que não podia dispor da atenção para outro objecto. Distraíam-no estas ideias das suas tarefas diárias e agitavam-lhe o sono das suas noites.
Jogava-lhe alternadamente o pensamento com estes dois assuntos, como se joga com duas esferas em uma só mão; enquanto se arroja uma ao espaço, cai a outra a ocupar o lugar que fica vazio. Ora sucede que muitas vezes as esferas encontram-se e batem uma na outra; e que muito será para admirar se deste choque resultar uma faísca? Pois com o jogo do pensamento pode suceder o mesmo. De duas ideias que se encontram, à força de se cruzarem muitas vezes no cérebro, pode sair um clarão. Este fenómeno sucedeu com Clemente.
Pensava ele uma noite no seu leito:
- Mas quem poderá ser o tal rapaz que Berta diz que amou e que ainda ama? Porque será impossível o casamento com ele? E Jorge também diz que o é. Ele parece que sabe a este respeito alguma coisa mais do que disse. Até quando lhe falam nisso se enraivece. Quando me lembro! Nunca o vi assim! Nem ele era daquelas coisas. Como está impertinente! Mas o tal rapaz, o tal rapaz? É claro que é conhecimento da cidade. Sim, porque da terra não pode ser... a rapariga já há muito que daqui saiu... e saiu criança... Desde que chegou com ninguém tem convivido... a não ser com os fidalgos da Casa Mourisca, mas esses.