Os Fidalgos da Casa Mourisca - Cap. 5: V Pág. 60 / 519

É preciso entrar nisto guiado pela razão, e não por um entusiasmo fugaz. O escritor nas horas de composição, e principalmente o artista e o lavrador nas fadigas do seu mister, não têm esses gozos que fantasias; antes devem sentir muitas vezes grandes desalentos e grandes fastios. O que os estimula, mais do que a poesia, é o dever. Recompensas há, não nego que as haja, além das materiais. Deve haver uma certa tranquilidade de consciência, uma ausência de remorsos, isto de um homem poder fitar sem vergonha os que trabalhem a seu lado, como se lhes dissesse: «Também tenho direito a viver.» Isso sim; mas o ideal que sonhas anda longe das oficinas, das fábricas e dos gabinetes de estudo, ou, se aí penetra, é à maneira daqueles deuses do paganismo que acompanhavam invisíveis os heróis que protegiam. Estarás sob a influência dele, mas não o verás. Se a contemplação dessa divindade é a recompensa que esperas, deixa-te antes ficar a montear por estas aldeias.

Maurício sorriu, objectando ao irmão:

- És suspeito, Jorge. Tu duvidas encontrar a poesia ao teu lado quando trabalhares porque ainda a não viste onde todos a vêem, aí por essas devesas, vales e ribeiras.

- Vi-a ainda hoje em casa de um lavrador, onde se trabalhava; tu é que não a vias lá.

- Ah! então já confessas que ela está com os que trabalham?

- Mas não a vêem esses. Não a viu Tomé, nem nenhum dos seus criados; vi-a eu, que estava de fora.

- E quem deu a Tomé sentidos para a ver?

- A ninguém faltam, creio. Mas quando se trabalha com verdadeiro ardor a visão encobre-se prudentemente, como se soubesse que quem a tem presente tão namorado está dela que o assaltam as distracções dos namorados. E o trabalho é exigente e severo; há uns cuidados pequeninos, impertinentes, prosaicos, de que não prescinde.





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