Jorge pousou-o sobre a mesa, e voltou-lhe aos lábios o mesmo estranho sorriso que mais de uma vez lhos contraíra naquela noite.
- Lê romances - murmurava ele. - A estas horas fantasia-se a heroína de algum. Está apaixonada por o tipo que mais lhe agradou, e busca pelo mundo a realização desse ideal. Afinal é o que eu digo. É como as outras. É uma rapariga da moda, pretensiosa, romântica e um pouco pedante... É o resultado do sistema de Tomé... Fazer viver estas mulheres em um mundo de fantasias, e trazê-las depois para a realidade, que lhes há-de parecer insuportável!... Triste método de formar esposas e mães!
E, ao pensar isto, sentia uma amargura, uma irritação que ele próprio não podia justificar.
Depois prosseguiu, com crescente malignidade:
- E quem sabe?... Este livro deixado aqui? Seria esquecimento ou propósito? É natural o desejo de ostentar a ciência e cultura de espírito adquiridas no colégio, e há tão pouca gente no caso de as apreciar nesta aldeia, que não admira que seja eu um dos eleitos. Enfim, são vaidades de rapariga; e pecado venial para que se deve ser indulgente. E demais que tenho eu com isso?... Maurício que averigúe, se quiser. Está no gosto dele...
Tomé voltou, e minutos depois estavam ambos em plena conferência. Notou contudo o lavrador aquela noite que Jorge mostrava-se muito mais desatento do que de costume. No meio dos seus exames, distraiu-os uma voz melodiosa que, em outro aposento da casa, cantava em tom de acalentar crianças.
Quando uma criança dorme,
Vêm os anjos a sorrir
Abrir as portas do céu,
Para Deus a ver dormir.
- Escute, - disse Tomé, apurando o ouvido - é a minha Berta a adormecer o irmão.
E Tomé pôs-se a escutar, com fervor paternal.
Jorge, a seu pesar, experimentava um suave encanto ao ouvir aquela voz juvenil, que continuava cantando:
E um deles à terra desce
Junto do berço a velar,
Para longe do menino
Os sonhos maus afastar.