Quem não está feia é a Dores, a pequenita do João Tavares; dois anos que passem mais por aquela infância e estará ali uma bela mulher. Mas que noite tão sombria! Nem a luz de ontem em casa do Tomé! Hoje nem Berta nos faz companhia. Sirva-lhe isto para desconto dos grandes pecados de que a acusas. Está provado que a vigília de ontem foi consagrada à prosaica tarefa de arrumar as suas coisas pelas gavetas e baús. É verdade, já a viste?...
- Não... já.
- Não? Já? Que diabo de distracção é essa? E que te pareceu?
Jorge esteve algum tempo antes de responder:
- Bem.
- Tão secamente bem? Deveras?!
- Então que queres tu que te diga? Sabes que não tenho o teu génio, para esgotar a minha eloquência diante da primeira figura de mulher que me apareça.
- E a respeito das tuas prevenções?
- Nada pude decidir.
- Pois eu já decidi. Acho-a cada vez mais adorável.
- Ah!
- Sabes que estive com ela esta manhã?
- Sim?! Hum! - disse Jorge com evidente constrangimento.
- É verdade, falei-lhe e, já se sabe, não me descuidei de advogar a minha causa.
- Ah! Sim? E então?...
- E então..., apesar de uma certa esquivança nas respostas que obtive, quer-me parecer que não tenho razão de queixa.
- Bem, bem.
- Enfim, certas recordações de infância... como sabes...
- Ah! Ela recorda-se da infância?
- Ora, como queres que ela se não recorde?
- Sim, é natural - concordou Jorge, fingindo bocejar, mas com suspeitas contracções nervosas.
E, estendendo subitamente a mão ao irmão, acrescentou:
- Boa noite, Maurício. É tarde e eu tenho sono. Adeus.
E de facto Jorge deitou-se, deixando em paz os livros, mais cedo do que costumava. Se dormiu é que não sabemos.
Maurício dormiu com certeza melhor do que ele.