Os Fidalgos da Casa Mourisca - Cap. 23: XXIII Pág. 322 / 519

daquela casa abandonada, à hora misteriosa do escurecer do dia, aqueles sons, ressoando pelos longos corredores e pela vastidão das salas desertas, tinham de facto não sei quê de sobrenatural; dir-se-ia música de fadas em um desses paços encantados que ergue no meio das florestas a imaginação popular.

Mas não era somente o inesperado e a estranheza do facto que feriam de espanto o senhor da Casa Mourisca. Aqueles sons exerciam sobre ele outra e superior influência.

Conhecia-os; não eram vozes estranhas aos ouvidos do ancião ralado de saudades, e que se achava ali atraído por elas.

Conhecia-os; em outras épocas tinham já ressoado entre aquelas tristes paredes e sob os altos tectos dos aposentos desabitados. Nesses tempos, havia ali dentro corações que pulsavam de simpatia ao escutá-los. Eram o sinal de que o anjo da família velava, de que a meiga criança, sobre cuja cabeça se condensavam todos os castos afectos daquela alma de homem, praticava com os anjos, seus irmãos, na misteriosa linguagem da música.

Aqueles sons... podia ele desconhecê-los?... eram os da harpa de Beatriz.

Mas que mistério revelavam eles agora? Que magia os fazia renascer, quando, havia tanto, caíra gelada a mão que os desferia?

As sombras dos mortos teriam vindo povoar a casa abandonada pelos vivos? A alma querida de Beatriz viera por ventura chorar e lamentar-se da solidão em que os seus haviam deixado os lugares que ainda conservavam tão vivas as memórias dela?

Quem pode analisar o confuso turbilhão de ideias que atravessou naquele momento o espírito do fidalgo?

Piedosas crenças da infância, superstições que a razão subjugara, quiméricos produtos de um cérebro febril, tudo se levantou em enxame alvoroçado e revolto a obscurecer a inteligência do ancião que tremia sob um inexplicável terror.





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