Lord Jim - Cap. 4: Capítulo III Pág. 23 / 434

Ouvia-se o ruído dos baldes carregados de cinza retinindo no seu movimento de subir e descer pelos ventiladores da casa das fornalhas, e este tinir de caçarola advertia-o de que o seu quarto estava a acabar. Suspirou de satisfação o e ao mesmo tempo de pena por ter de quebrar esta serenidade que alimentava a liberdade aventurosa dos seus pensamentos. Tinha também um pouco de sono e sentia uma languidez agradável percorrer-lhe o corpo todo, como se o sangue se lhe tivesse transformado em leite morno. O capitão subira sem ruído, com o casaco do pijama aberto para trás. Trazia o rosto vermelho, meio adormecido, o olho esquerdo mal aberto, o direito arregalado, vítreo; com uma expressão de estupidez, inclinou a cabeçorra sobre o mapa e pôs-se a coçar as costelas, ensonado. Havia qualquer coisa de obsceno no espectáculo da sua nudez. O peito nu reluzia mole e gorduroso como se tivesse suado gordura pelos poros durante o sono. Articulou uma observação profissional numa voz áspera e cansada semelhante ao som irritante de uma lima a polir a aresta de uma prancha; a prega do seu duplo queixo pendia como um saco amarrado mesmo por baixo da articulação dos maxilares. Jim teve um sobressalto e a sua resposta veio carregada de deferência; mas a imagem daquela figura gorda e repelente, como que vista pela primeira vez num momento de revelação, fixou-se-lhe para sempre na memória como a encarnação de tudo o que existe de abjecto e vil emboscado no mundo que amamos: no fundo dos nossos corações confiamos a nossa salvação aos homens que nos rodeiam, às visões que enchem os nossos olhos, aos sons que enchem os nossos ouvidos e ao ar que enche os nossos pulmões.

A fina apara de ouro da Lua descera lentamente a boiar, perdera-se na superfície escura das águas, e a eternidade oculta para além do firmamento parecia aproximar-se da Terra, com o brilho maior das estrelas, com o esplendor mais sombrio da meia transparência da abóbada que cobria o disco horizontal de um mar opaco.