Capítulo 6: Capítulo V
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Esta situação durou até à noitinha do terceiro dia, quando, depois de ter atirado uns tantos gritos tremendos, se viu obrigado a procurar salvação na fuga a uma legião de centopeias. Arrombou a porta, deu um salto pelas escadinhas decrépitas abaixo, aterrou em cima da barriga e Mariani, recompôs-se e disparou-se como um coelho pelas ruas fora. Um polícia apanhou-o num monte de lixo no dia seguinte de manhãzinha. Primeiro julgou que o estavam a levar para a forca e lutou pela sua liberdade como um herói, mas quando me sentei ao lado da sua cama tinha passado dois dias muito calmo. O seu magro rosto bronzeado, com o bigode branco, tinha um aspecto correcto e calmo no travesseiro, como o rosto de um soldado com alma de criança gasto pela guerra; o único senão era um vislumbre espectral de temor emboscado no brilho inexpressivo do seu olhar, semelhante à forma indefinível de um terror escondido em silêncio atrás de uma vidraça. Mantinha-se tão perfeitamente calmo que comecei a abandonar-me à extravagante esperança de ouvir uma explicação da famosa história observada do seu ponto de vista. Porque desejava eu tão intensamente ir revolver pormenores deploráveis de um acontecimento que, no fim de contas, só me dizia respeito como membro de uma vaga associação de homens ligados por uma comunhão em trabalhos inglórios e pela fidelidade a um certo padrão de conduta é o que não posso explicar. Podem chamar-lhe curiosidade doentia, se quiserem: mas eu sabia que desejava encontrar qualquer coisa. Talvez esperasse inconscientemente encontrar essa qualquer coisa, alguma razão profunda e redentora, alguma explicação misericordiosa, uma sombra de desculpa, convincente. Vejo muito bem agora que esperava o impossível- o derrubar daquilo que é o fantasma mais obstinado da criação do homem; o derrubar da dúvida inquietante e surgindo como um nevoeiro a roer em segredo como um verme, e mais gelada do que a certeza da morte - a dúvida sobre o poder soberano entronizado num padrão fixo de conduta.
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