O outro dia meteu-se-lhe na cabeça atravessar o quarto só para me abrir a porta, e eu senti-me mais próximo da humanidade do que é meu costume desde há muitos anos. É ridículo, não é? Está claro, eu suponho que há aqui qualquer coisa, qualquer caso feio, que você conhece, mas, se estou persuadido de que se trata de qualquer coisa de realmente feio, digo também para comigo que se lhe pode perdoar. Declaro que sou incapaz de o julgar culpado de qualquer acto mais grave do que o roubo de um pomar. É muito mais grave? Creio que teria sido melhor pôr-me ao corrente, mas há tanto tempo que eu e você nos tornámos dois santos que pode muito bem ter esquecido os pecados da sua juventude. Pode acontecer que lhe peça um dia que me conte tudo, e então terá de o fazer. Não quero interrogá-lo directamente até ter uma ideia do que se trata. E é ainda muito cedo. Deixemo-lo abrir mais umas vezes a porta... ' Nestes termos me escrevia o meu amigo. Eu estava contente por três razões, primeiro pela maneira como Jim se comportava, depois pelo tom da carta e por fim pela minha própria inteligência. Evidentemente, eu sabia o que estava a fazer. Soubera penetrar-lhe o carácter, etc., etc. E se fosse o ponto de partida para qualquer coisa de maravilhoso? Nessa tarde, reclinado numa cadeira de repouso à sombra do meu toldo na popa (estava no porto de Hong-Kong), comecei a sonhar grandezas para Jim.
«Fiz uma nova viagem para o Norte, e quando voltei encontrei outra carta do meu amigo à minha espera. Abri-a imediatamente. 'Não me falta nenhuma colher, creio', dizia a primeira linha; 'de resto, não investiguei muito. Ele partiu, deixando sobre a mesa do pequeno almoço um bilhete muito cerimonioso a pedir desculpa. Esta atitude é própria de uma pessoa estúpida ou sem coração, ou as duas coisas, é-me indiferente.